O
CORTIÇO DE ALUÍSIO AZEVEDO:
UM RETRATO HISTÓRICO DA MULHER
PROMÍSCUA NA REPÚBLICA VELHA
(1890-1920)
Maria
Francelina Aguiar
Olenca Bazzan Nachtigall
Pâmela Peretti Vargas
Regina Schüssler
Resumo
O objetivo deste artigo é analisar
a condição da mulher dentro
da obra literária “O Cortiço”
de Aluísio Azevedo, relacionando
a ficção com o momento histórico
em que esta estava inserida na época,
da República Velha (1890-1920).
Procurando verificar como esta mulher
dita “promiscua” se fazia
aceitar ou mesmo se sujeitar a ideologia
vigente de forte cunho patriarcal e religioso.
Transmitir a história da mulher
na época.
Palavras-Chave: Gênero.
Vida Privada. O Cortiço.
1.
Introdução
O período que culminou com o alvorecer
da República no Brasil trouxe consigo
movimentos sociais e ideológicos
que interpenetraram e modificaram gradualmente
as mentalidades e a forma de agir dentro
da sociedade. Desde as classes mais favorecidas
até as mais baixas puderam perceber
e viver no decorrer deste período
modificações que se apresentaram
no cotidiano das pessoas, refletindo diretamente
na vida privada.
Neste contexto a mulher que vinha já
desde a Idade Média vivendo sob
o jugo da igreja e carregando o estigma
de portadora do pecado original submetendo-se
as regras impostas e rigidamente cobradas
pela sociedade patriarcal, vem lentamente
se posicionando no meio em que vive. No
entanto cabe dizer que somente no final
das décadas de 20 e 30 foi que
realmente essas novas condições
irão adentrar visivelmente na sociedade
a ponto de serem percebidas, criticadas
e, inclusive, representando um receio
que beira ao medo. Estas mudanças
incomodaram aos conservadores da época
deixando-os perplexos.
No início da república uma
ideologia que via esta nova condição
política tomada de símbolos
femininos, trazia em sua raiz modelos
iluministas e também positivistas
que viam a República como uma bela
mulher maternal que adota plenamente seus
filhos; os cidadãos do estado,
e ama-os incondicionalmente, trazendo
a eles a liberdade social tão sonhada.
A proposta de nosso trabalho é
analisar a obra literária O Cortiço,
de Aluísio Azevedo, rica em detalhes,
comparando a mulher real desta época
com a descrita por Aluísio, que
irá retratar de certa forma a realidade
existente no período da República
Velha, principalmente a esfera que se
destina a mulher na sociedade, fazendo
um contraste das personagens da classe
alta e das da classe mais pobre, focando
a vida privada destas menos favorecidas
que habitavam especialmente os cortiços.
E cabe a este artigo enquadrar esta obra
em um contexto histórico, atribuindo
assim uma analise científica a
esta literatura tão minuciosamente
trabalhada por Aluízio Azevedo,
contrastando as enfermidades “espirituais”
das pessoas, a moral e os costumes tradicionalmente
assegurados por uma cultura judaico-cristã,
que se desestabiliza pendendo para o caos,
na qual a República Velha tentará
através do uso do positivismo,
controlar a população, e
no caso das mulheres mantê-las sob
o jugo moral anteriormente de posse da
igreja.
O enfoque que daremos a esta análise,
esta voltada à posição
da mulher na sociedade, a forma como era
vista pelos homens, e também a
forma como eram encaradas pela sociedade.
Ao fazermos à análise devemos
levar em consideração à
carga ideológica a que Aluísio
Azevedo esta submetido por estar inserido
no contexto em que se propõem a
retratar, e também por estarmos
trabalhando com uma obra literária.
Considerar-se-á, com isto, os traços
fictícios do qual está carregada,
bem como do fato de a mulher ainda ser
vista como um ser propenso as “promiscuidades”,
já que o autor, sendo homem, traz
consigo a característica tendenciosa
da época de julgar todo e qualquer
ato fora do padrão moral aceito
pela sociedade como algo promíscuo.
Neste sentido, também outro fator
de extrema relevância é o
estilo literário proposto pelo
autor de O Cortiço, sendo este
o fundador do estilo naturalista no Brasil,
onde se procura retratar a realidade nua
e crua, ou seja, não romantizando
a realidade, buscando passar a idéia
de que seus personagens agem de forma
natural, enquadrando-os em seu “habitat
natural”, desnudando os sestros
e mesmo as taras dos indivíduos.
Ele também irá pronunciar-se
com maior veracidade quanto à influência
do meio social sobre o ser humano, além
é claro do fatalismo aliado ao
zoomorfismo, do qual o autor abusa para
expor sua proposta literária, comparando
seus personagens a animais e com isso
salientar as semelhanças físicas
e também o instinto primitivo do
homem herdado de seu lado grotesco e animal.
2. O Cortiço no Contexto
Histórico da República Velha
A obra o Cortiço foi escrita no
ano de 1890, sucedendo a Proclamação
da República e a recente abolição
da escravatura, onde a sociedade ainda
não estava adaptada às novas
formações sociais que a
política e a economia do momento
representavam, sendo que em várias
regiões mais distantes da capital
levaram-se anos para tomar conhecimento
das mudanças que ocorriam nos centros
metropolitanos.
Na obra historiográfica “A
Formação das Almas”
constatou-se que o modelo republicano
foi importado de um ideal francês,
onde este era representado por uma mulher
forte, audaciosa, libertadora, independente,
honrosa e plena de virtudes. No Brasil
esta concepção foi aceita
entre a elite, porém, nas classes
média e baixa (escravos recém
libertos, imigrantes e pobres) esta ideologia
não foi incorporada, até
porque ainda estavam vinculados ao paternalismo
instituído pelo regime monarquista,
fazendo brotar um sentimento de repudio
a república, que transforma esta
mulher idealizada pelos franceses e pela
elite em uma prostituta vadia. Numa república
onde poucos foram os homens que se envolveram,
como mulheres ainda castas e do lar envolver-se-iam,
pois política era assunto masculino,
onde senhoras não participavam.
A mulher se fosse pública era prostituta,
daí a alegoria de vincular o público
com o promíscuo. (CARVALHO, 1990,
p.92).
Exatamente neste contexto republicano
é que se deram as formações
dos cortiços, que possuem a finalidade
de instalar a grande massa populacional
que busca nos grandes centros industriais
oferecer-se como mão de obra. Em
“Mulheres e Menores no Trabalho
Industrial”, são caracterizadas
como se acomodavam habitacionalmente estes
excedentes populacionais, onde a autora
Esmeralda Blanco B. de Moura demonstra
as condições subumanas destas
instalações:
A cidade sofre, então, a pressão
do crescimento demográfico: falta
de «habitações decentes
e baratas e necessidade de residir «perto
do lugar de emprego dada à insuficiência
e o alto custo do transportes »
provocam um verdadeiro confinamento do
trabalhador nas habitações
coletivas. [...}Casebres e cortiços
multiplicam-se próximo aos estabelecimentos
industriais, em «ruas infectas,
sem calçamento», denunciando
a precária situação
sócio-econômica do trabalhador.
Residindo em habitações
coletivas ou em casinhas – [...]
aglomerando-se «para dormir»
nos chamados hotéis cortiços.
(MOURA, 1982, pg.22)
Esta característica verifica-se
claramente no cortiço construído
por João Romão, personagem
da obra O Cortiço, que busca lucrar
primeiramente com o material de segunda
mão para construção
das casinhas e após com o aluguel
obtido por elas. Pelo fato de ser localizado
próximo a uma pedreira locava suas
habitações aos operários
que lá trabalhavam. Além
dos trabalhadores da pedreira, lá
residiam suas famílias, imigrantes,
ex-escravos, as mulheres lavadeiras e
pessoas que não possuíam
condições financeiras de
melhor habitarem.
3. A Mulher dentro do Cortiço
Ao analisarmos o estereótipo das
mulheres da obra O Cortiço, percebemos
que o autor acaba por interpretá-las
da mesma forma, colocando-as em um mesmo
patamar de promiscuidade, selvageria e
instintividade primitiva, independente
da classe social da qual ela venha a pertencer.
Com isto percebemos uma necessidade por
parte do mesmo em caracterizar as mulheres
como um objeto de futilidade, e ela como
um animal, sem espírito e consciência
dos seus próprios atos. No entanto
ao homem fica reservada a compreensão
de sua instintividade, já que é
macho, como podemos perceber na citação
retirada da obra em questão.
Mas, daí a um mês, o pobre
homem, acometido de um novo acesso de
luxuria, voltou ao quarto da mulher. [...]
Miranda nunca a tivera, nem nunca a vira
assim tão violenta no prazer. Estranhou-a.
Afigurou-se-lhe estar nos braços
de uma amante apaixonada; descobriu nela
o capitoso encanto com que nos embebedam
as cortesãs amestradas na ciência
do gozo venéreo. (AZEVEDO, 2004,
p.21)
No
trecho acima, percebe-se a necessidade
do autor em colocar o ato de Miranda,
como algo que provém da luxaria
e da necessidade masculina, porém,
também deixa claro o fato de sua
esposa, D. Estela, não poder assumir
na cama o papel de amante voraz pelo amor
e as caricias do próprio esposo,
tanto que quando utiliza o termo “cortesã
amestrada”, fica claro que uma esposa
jamais poderia assumir tal função.
No decorrer da obra encontramos diversas
mulheres figurando aspectos que vão
sendo visualizados entre os habitantes
destas moradias. Dentre elas, principalmente
as lavadeiras, prostitutas, amas de leite,
ex-escravas que na verdade continuavam
numa condição de total submissão,
como no caso de Bertoleza, que juntava
suas moedas para a compra de sua alforria.
Bertoleza, “crioula trintona”
(AZEVEDO, 2004, p.15), que conseguiu reunir
certa quantia em dinheiro a partir das
viandas que cozinhava para fora. Desta
quantia passava uma porcentagem ao seu
dono, um velho cego residente em Juiz
de Fora, outra parte era destinada para
a compra da alforria e uma terceira parte
para sua sobrevivência. Com a morte
de seu primeiro companheiro, com o qual
vivia amigada, passa a viver com João
Romão que administra suas economias
e as transforma em considerável
fortuna. Esta união torna-se benéfica
para ambos, pois para João, “Bertoleza
representava o papel tríplice de
caixeiro, de criada e de amante”
(AZEVEDO, 2004, p 17), e para ela no momento
em que “ele propôs-lhe morarem
juntos, e ela concordou de braços
abertos, feliz em manter-se de novo com
um português, porque, como toda
a cafuza, Bertoleza não queria
sujeitar-se a negros e procurava instintivamente
o homem numa raça superior à
sua.” (AZEVEDO, 2004, pg.16). Neste
contexto vê-se ainda um pesado preconceito
relacionado a pessoas que exerciam trabalhos
pesados, e também em relação
à cor de pele dos indivíduos.
O autor Aluísio Azevedo deixa claro
este desdenho a estas pessoas nas relações
existentes entre elas, sendo que o preconceito
era mútuo entre todos. Bertoleza
era negra e exercia preconceito em ter
um companheiro negro, por exemplo.
Romão utiliza-se da mulher, do
trabalho exercido ao longo dos anos de
união para acumular fortuna. Após
ter acumulado esta fortuna, quer também
status social, e para isso é necessário
casar-se com alguém que possa lhe
promover a aquisição de
um título, no caso Zulmira, porém
Bertoleza representa um obstáculo
a este objetivo. Contudo esta não
aceita de bom grado ser simplesmente descartada:
Você está muito enganado
seu João, se cuida que se casa
e me atira à toa! Sou negra, sim,
mas tenho sentimentos! Quem me comeu a
carne tem de roer-me os ossos! Então
há de uma criatura ver entrar ano
e sair ano, a puxa pelo corpo todo o santo
dia que Deus manda o a mundo, desde pela
manhãzinha até pelas tantas
da noite, para ao depois ser jogada no
meio da rua, como galinha podre?! Não!
Não há de ser assim, seu
João! (AZEVEDO, 2004, pg.146).
João
para livra-se definitivamente de Bertoleza,
denuncia-a como escrava fujona. A mesma
não suportando tamanha traição
e humilhação comete suicídio.
O Casamento neste período ainda
representava segurança e concedia
a mulher o devido respeito perante a sociedade,
mesmo que isso representasse sujeitar-se
a inconvenientes conjugais, o que fica
visível na fala de D. Estela: “Desgraçadamente
para nós, mulheres da sociedade
não podemos viver sem o esposo,
quando somos casadas; de forma que tenho
de aturar o que me caiu em sorte, quer
goste dele, quer não goste!”
(AZEVEDO, 2004, pg.34).
Estas características serão
encontradas nos demais casais figurados
na obra, como: Bruno e Leocádia,
Miranda e D. Estela, Jerônimo e
Piedade, Firmo e Rita, Pombinha e Costa.
Relações plenas de interesses,
com exceção de Alexandre
e Augusta que aparentemente viviam de
forma mais harmônica, apesar de
Augusta exercer o velho padrão
da esposa recatada e submissa ao marido.
Porém, esta relação
de necessidade de manter um casamento
fazia-se também por parte do homem,
que buscava na mulher uma forma de ascender
socialmente: “uma mulher naquelas
condições, dizia ele convicto,
representa nada menos que o capital, e
um capital em caso nenhum a gente despreza!
Agora, você o que devia era nunca
chegar-se para ela...” (AZEVEDO,
2004, pg.34).
No entanto também encontramos em
O Cortiço as mulheres que não
vêem no casamento um bom futuro.
Para elas não é necessário
“ajuntar-se” a um homem para
conseguir sobreviver perante a sociedade
e também sustentar-se economicamente.
A personagem Rita Baiana de Aluízio
Azevedo, lavadeira é uma mulher
independente. Em suas atitudes ela representa
um exemplo àquelas mulheres que
se deixam rebaixar pelos homens. Por eles
tudo fazem, até mesmo abrir mão
de suas vontades próprias. Nesse
sentido Rita exerce entre as mulheres
que se encontram na mesma situação
social e econômica que a sua, um
exemplo, tornando-se uma líder
e um exemplo de vida: “- Casar?
protestou Rita. Nesta não cai a
filha de meu pai! Casar? Livra! Para quê?
Para arranjar cativeiro? Um marido é
pior que o diabo; pensa logo que a gente
é escrava! Nada! Qual! Deus te
livre! Não há como viver
cada um senhor e dono do que é
seu” (AZEVEDO, 2004, pg.62)
A personagem vive suas paixões,
sem abrir mão de sua autonomia.
O autor a retrata como uma mulher forte,
que através de suas trouxas de
roupa que lava para fora se mantém
economicamente pagando primeiramente seu
quarto no Cortiço, assim como sua
alimentação e suas farras.
Algo que também se percebe é
o fato de Azevedo não a tratar
como uma mulher promíscua, mas
sim uma mulher que expõe sua sensualidade,
pois esta está presente em todos
os atos da mestiça, vendo-se mostrar
nas festas que promove e até mesmo
quando está trabalhando ao arregaçar
sua saia nas cadeiras e mostra suas pernas
e coxas.
A condição da mulher no
cortiço sob o jargão do
marido não era tolerado ainda assim
pelas mulheres. Em geral aceitavam sua
condição passivamente como
no caso de Augusta. Leocádia, esposa
de Bruno, não queria mais esta
condição e viu na venda
de seu leite materno seu caminho de independência.
Na época esta era uma prática
ainda muito comum, em que na a classe
pobre, mães recentes vendiam sua
força de trabalho, através
do aleitamento materno por um salário
mais digno. Não deixava de ser
uma forma de prostituir-se, já
que muitas engravidavam exclusivamente
para este fim, dadas as condições
de vida miseráveis em que se encontravam.
Leocádia é um exemplo desta
condição quando pede a Henriquinho,
moço galante hospedado em casa
de Miranda para fazer-lhe um filho para
obter mais renda, já que quer deixar
a vida de lavadeira:
-Olha! Pediu ela, faz-me um filho, que
eu preciso alugar-me de ama-de-leite...Agora
estão pagando muito bem para as
amas! A Augusta Carne-Mole, nesta última
barriga, tomou conta de um pequeno aí
na casa de uma família de tratamento,
que lhe dava setenta mil-réis,
por mês!... (AZEVEDO, 2004, p.62).
Na
obra ela se sujeita a trair o marido pelo
fato deste não engravidá-la.
No entanto ao descobrir o mal feito da
esposa, Bruno não a aceita em casa
e a expulsa, o que não a impede
de levar adiante a gravidez que no decorrer
da obra servirá ao propósito
inicial.
Situação esta que era muito
comum na época para suprir as necessidades
de sobrevivência em relação
a uma sociedade, onde o emprego era algo
difícil de ser conquistado, ainda
mais por uma mulher pobre. Sobra então
a estas mulheres submeter-se muitas vezes
a pressão social, vendendo-se.
4. A Mulher na Elite Republicana
Segundo Aluísio Azevedo
O autor de O Cortiço ao trabalhar
as mulheres que pertenciam à elite
Republicana brasileira expõe a
primitividade e a promiscuidade mesmo
das mulheres que pertenciam às
classes inferiores, tratando-as como seres
grotescos e dominados por seus instintos
primitivos.
Ao abordar a personagem Pombinha, menina
que primeiramente fazia parte da elite,
e devido à morte do pai, ela e
sua mãe acabam por morar no cortiço,
porém, a sua tutora busca manter
nela os hábitos voltados à
intelectualidade e a cultura, menina deveras
prendada a espera de um bom casamento
para retornar a ascender socialmente,
sendo este realizado com Costa, homem
do comércio.
Dentro do cortiço, Pombinha, pelo
que se percebe na literatura de Aluízio
de Azevedo, é a única pessoa
letrada, a qual cabe a função
de escrever correspondências para
seus vizinhos e companheiros de moradia,
e, em retribuição, a garota
recebia mimos destas pessoas, o que a
mantinha bem apessoada, juntamente com
as delicadezas da mãe. Essa aproximação
com a vida pessoal dos miseráveis
moradores do cortiço e também,
ao relacionar-se com Leoni, prostituta
da alta sociedade, passa a perceber o
poder que as mulheres exercem sobre os
homens,
[...] Que estranho poder era esse, que
a mulher exercia sobre eles, a tal ponto,
que os infelizes, carregados de desonra
e de ludíbrio, ainda vinham covardes
e suplicantes mendigar-lhe o perdão
pelo mal que ela lhes fizera?... Sorriu.
E no seu sorriso já havia garras.
[...] Compreendeu como era que certos
velhos respeitáveis, cuja fotografia
Léoni lhe mostrara no dia que passaram,
juntas, deixavam-se vilmente cavalgar
pela loureira, cativos e submissos, pagando
a escravidão com honra, os bens,
e até com a própria vida,
se a prostituta, depois de os ter esgotado,
fechava-lhes o corpo. E continuou a sorrir,
desvanecida na sua superioridade sobre
esse outro sexo, vaidoso e fanfarrão,
que se julgava senhor e que, no entanto,
fora posto no mundo simplesmente para
servir ao feminino; escravo ridículo
que, para gozar um pouco, precisava tirar
da sua mesma ilusão a substância
do seu gozo; ao passo que a mulher, a
senhora, a dona dele, ia tranqüilamente
desfrutando o seu império, endeusada
e querida, prodigalizando martírios,
que os miseráveis aceitavam contritos,
a beijar os pés que os deprimiam
e as implacáveis mãos que
os estrangulavam. (AZEVEDO, 2004, pg.96)
A
partir de então Pombinha percebe
que o matrimônio com Costa não
é de seu esperado, então
busca unir-se a Léoni para então
tornar-se uma prostituta de luxo. Já
Léoni por sua vez, meretriz há
algum tempo, acompanhada de riquezas e
influências sociais conquistadas
por esta profissão, apresenta um
novo mundo a Pombinha, fascinando-a por
seu esplendor, e a possibilidade de ascensão
social e ganhos financeiros com maior
facilidade.
Segundo Luiz Carlos Soares em Rameiras,
Ilhoas, Polacas... afirma que a prostituta
tem como função social “um
papel estabilizador na sociedade, permitindo
que o homem pudesse descarregar a excitação
causada pela necessidade imperiosa do
prazer venéreo, sem provocar grandes
problemas na organização
social” (SOARES, 1992,pg.17), ou
seja, para Pombinha e Léoni sua
profissão, de certa forma, era
de grande valia para manutenção
de um sistema, onde buscava-se promover
certa estabilidade social (status quo),
e serviam de válvula de escape
para as tensões, as fantasias e
desejos sexuais dos homens, sendo que
estas necessidades não poderiam
ser saciadas por suas esposas.
Léoni e Pombinha, segundo o Dr
Lassance Cunha, no livro Rameiras, Ilhoas,
Polacas, pertenciam a classe das prostitutas
de “primeira ordem que eram freqüentadas
por ricos, vivendo isoladamente em casas
de sobrado decentes” (SOARES, 1992,
pg.26). Percebe-se na literatura de Aluízio
Azevedo e a historiografia elaborada por
Luiz Carlos Soares, que utiliza-se dos
estudos médicos de Lassance Cunha
a incongruência em relação
ao posicionamento de Léoni perante
a população do cortiço,
e também faz-se referências
em relação aos seus trajes
e moradias,
[...] freqüentadas somente por aquelas
pessoas que podem retribuir seus favores
com generosidade, moram isoladas, em casas
de sobrados decentes e bem ornadas, vivem
em tal ou qual opulência, e trajam
com todo o primor da moda; olham com desprezo
para as suas companheiras que estão
em escala inferior, e afetam em público
um ar de honestidade que dificilmente
deixa transparecer a fealdade de sua conduta.
Esta ordem de mulheres porta-se em geral
com decência, e o trato freqüente
que tem com pessoas de uma educação
delicada lhes faz adquirir certo grau
de cortesia, de cultura, e de urbanidade
em suas maneiras e seu falar: não
se encontra nelas a desenvoltura, o despejo
imodesto, a torpe lascívia das
ordens inferiores; jamais permite que
em sua casa se congreguem os libertinos
para representarem cenas de devassidão
e vivendo sempre na maior tranqüilidade,
não incomodam as autoridades nem
ofendem ao pudor com ações
escandalosas.” (SOARES, 1992, pg.26)
[...] seja assim ou assado, a verdade
é que ela passa muito bem de boca
e nada lhe falta: sua boa casa; seu bom
carro para passear à tarde; teatro
toda noite; bailes quando quer e, aos
domingos, corridas, regatas, pagodes fora
da cidade e dinheirama grossa para gastar
à farta!” (AZEVEDO, 2004,
pg.104).
Ao
adentrar no Cortiço, Léoni
busca manter sua aparência de boneca
francesa, mas, no entanto, não
destratava todos aqueles que vinham a
olhá-la com curiosidade de quem
nunca havia visto tal beldade, voluptuosa
e bem vestida. Até por que esta
é madrinha de uma menina, filha
de moradores do cortiço, que trata
a qual como se fosse sua própria:
”Léoni na casa da comadre,
cercada por uma roda de lavadeiras e crianças,
descritiva sobre assuntos sérios,
falando compassadamente, cheia de inflexões
de pessoa prática e ajuizada, condenando
maus atos e desvarios, aplaudindo a moral
e a virtude.” (AZEVEDO, 2004, pg.103).
Ao passo que, D. Estela esposa do rico
empresário Miranda, que obteve
tal posição social através
do casamento com a mesma, destacava-se
na alta elite social com toda sua pompa,
apesar de um casamento arruinado, mantido
somente de aparências, buscando
em outros homens seus desejos sexuais
e afetivos. Podemos dizer que Azevedo
trata Estela com o mesmo grau de promiscuidade
na qual retrata as mulheres do cortiço.
5. Conclusão
A República instalou-se definitivamente
no Brasil, e com ela um modelo que ainda
pregava uma moral permeada das antigas
tradições e costumes que
colocavam a mulher em seu “devido
lugar”. Tanto a ideologia judaico-cristã
como a positivista ditavam o modelo correto
de conduta feminina. Para Aluísio
Azevedo esta conduta era tão certa
quanto a caracterização
que suas mulheres de O cortiço
assumiam. Todas relegadas ao mesmo patamar,
sem diferenciação entre
as corticeiras, as prostitutas ou as senhoras
de sociedade.
A República, como pública
que era, aos poucos ia sutilmente convidando
estas mulheres a adentrarem na esfera
social, para colocarem-se e assumirem
suas posturas em prol de uma qualidade
de vida que atendesse aos seus desejos,
tornando aos olhos dos conservadores este
movimento feminino em algo não
aceitável socialmente.
Neste contexto concluímos que Aluízio
através de seu naturalismo deixa
claro o lugar em que socialmente a mulher
deveria estar, ou seja, a política,
a economia e a sociedade podem receber
transformações desde que
estas não influenciem no comportamento
da mulher. Esta deve manter-se casta,
virtuosa e recatada, atendo-se ao papel
de boa esposa, mãe carinhosa e
excelente educadora, transmitindo as regras
que a sociedade deve continuar privilegiando.
E que a Prostituição mais
do que uma necessidade financeira, também
passava a ser uma alternativa de ascensão
social e de emancipação
feminina, principalmente no caso das prostitutas
de primeira ordem que eram mulheres respeitadas
e mantinham até uma participação
junto à elite política e
social durante a República Velha.
No entanto, ainda não é
neste momento em que a mulher terá
seu lugar ao sol, porém, é
neste contexto de industrialização
e progresso que ela também será
requisitada e aceita para a consolidação
da prosperidade nacional. È neste
momento que a mulher lentamente irá
aparecer para contribuir para tal movimento
e conquistando a força motriz que
fará dela renascer das cinzas,
qual a fênix adormecida.
Referências
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