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REVISTA DOS ALUNOS DE GRADUAÇÃO E PÓS-GRADUAÇÃO
DA FACULDADE PORTO-ALEGRENSE - FAPA

PORTO ALEGRE - RIO GRANDE DO SUL - BRASIL

 
Revista Historiador - Ano 01 - Número 01 - Dezembro 2008
 

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O CORTIÇO DE ALUÍSIO AZEVEDO: UM RETRATO HISTÓRICO DA MULHER PROMÍSCUA NA REPÚBLICA VELHA (1890-1920)

Maria Francelina Aguiar
Olenca Bazzan Nachtigall
Pâmela Peretti Vargas
Regina Schüssler

Resumo
O objetivo deste artigo é analisar a condição da mulher dentro da obra literária “O Cortiço” de Aluísio Azevedo, relacionando a ficção com o momento histórico em que esta estava inserida na época, da República Velha (1890-1920). Procurando verificar como esta mulher dita “promiscua” se fazia aceitar ou mesmo se sujeitar a ideologia vigente de forte cunho patriarcal e religioso. Transmitir a história da mulher na época.
Palavras-Chave: Gênero. Vida Privada. O Cortiço.

1. Introdução

O período que culminou com o alvorecer da República no Brasil trouxe consigo movimentos sociais e ideológicos que interpenetraram e modificaram gradualmente as mentalidades e a forma de agir dentro da sociedade. Desde as classes mais favorecidas até as mais baixas puderam perceber e viver no decorrer deste período modificações que se apresentaram no cotidiano das pessoas, refletindo diretamente na vida privada.

Neste contexto a mulher que vinha já desde a Idade Média vivendo sob o jugo da igreja e carregando o estigma de portadora do pecado original submetendo-se as regras impostas e rigidamente cobradas pela sociedade patriarcal, vem lentamente se posicionando no meio em que vive. No entanto cabe dizer que somente no final das décadas de 20 e 30 foi que realmente essas novas condições irão adentrar visivelmente na sociedade a ponto de serem percebidas, criticadas e, inclusive, representando um receio que beira ao medo. Estas mudanças incomodaram aos conservadores da época deixando-os perplexos.

No início da república uma ideologia que via esta nova condição política tomada de símbolos femininos, trazia em sua raiz modelos iluministas e também positivistas que viam a República como uma bela mulher maternal que adota plenamente seus filhos; os cidadãos do estado, e ama-os incondicionalmente, trazendo a eles a liberdade social tão sonhada.

A proposta de nosso trabalho é analisar a obra literária O Cortiço, de Aluísio Azevedo, rica em detalhes, comparando a mulher real desta época com a descrita por Aluísio, que irá retratar de certa forma a realidade existente no período da República Velha, principalmente a esfera que se destina a mulher na sociedade, fazendo um contraste das personagens da classe alta e das da classe mais pobre, focando a vida privada destas menos favorecidas que habitavam especialmente os cortiços. E cabe a este artigo enquadrar esta obra em um contexto histórico, atribuindo assim uma analise científica a esta literatura tão minuciosamente trabalhada por Aluízio Azevedo, contrastando as enfermidades “espirituais” das pessoas, a moral e os costumes tradicionalmente assegurados por uma cultura judaico-cristã, que se desestabiliza pendendo para o caos, na qual a República Velha tentará através do uso do positivismo, controlar a população, e no caso das mulheres mantê-las sob o jugo moral anteriormente de posse da igreja.

O enfoque que daremos a esta análise, esta voltada à posição da mulher na sociedade, a forma como era vista pelos homens, e também a forma como eram encaradas pela sociedade. Ao fazermos à análise devemos levar em consideração à carga ideológica a que Aluísio Azevedo esta submetido por estar inserido no contexto em que se propõem a retratar, e também por estarmos trabalhando com uma obra literária. Considerar-se-á, com isto, os traços fictícios do qual está carregada, bem como do fato de a mulher ainda ser vista como um ser propenso as “promiscuidades”, já que o autor, sendo homem, traz consigo a característica tendenciosa da época de julgar todo e qualquer ato fora do padrão moral aceito pela sociedade como algo promíscuo.
Neste sentido, também outro fator de extrema relevância é o estilo literário proposto pelo autor de O Cortiço, sendo este o fundador do estilo naturalista no Brasil, onde se procura retratar a realidade nua e crua, ou seja, não romantizando a realidade, buscando passar a idéia de que seus personagens agem de forma natural, enquadrando-os em seu “habitat natural”, desnudando os sestros e mesmo as taras dos indivíduos. Ele também irá pronunciar-se com maior veracidade quanto à influência do meio social sobre o ser humano, além é claro do fatalismo aliado ao zoomorfismo, do qual o autor abusa para expor sua proposta literária, comparando seus personagens a animais e com isso salientar as semelhanças físicas e também o instinto primitivo do homem herdado de seu lado grotesco e animal.

2. O Cortiço no Contexto Histórico da República Velha

A obra o Cortiço foi escrita no ano de 1890, sucedendo a Proclamação da República e a recente abolição da escravatura, onde a sociedade ainda não estava adaptada às novas formações sociais que a política e a economia do momento representavam, sendo que em várias regiões mais distantes da capital levaram-se anos para tomar conhecimento das mudanças que ocorriam nos centros metropolitanos.

Na obra historiográfica “A Formação das Almas” constatou-se que o modelo republicano foi importado de um ideal francês, onde este era representado por uma mulher forte, audaciosa, libertadora, independente, honrosa e plena de virtudes. No Brasil esta concepção foi aceita entre a elite, porém, nas classes média e baixa (escravos recém libertos, imigrantes e pobres) esta ideologia não foi incorporada, até porque ainda estavam vinculados ao paternalismo instituído pelo regime monarquista, fazendo brotar um sentimento de repudio a república, que transforma esta mulher idealizada pelos franceses e pela elite em uma prostituta vadia. Numa república onde poucos foram os homens que se envolveram, como mulheres ainda castas e do lar envolver-se-iam, pois política era assunto masculino, onde senhoras não participavam. A mulher se fosse pública era prostituta, daí a alegoria de vincular o público com o promíscuo. (CARVALHO, 1990, p.92).

Exatamente neste contexto republicano é que se deram as formações dos cortiços, que possuem a finalidade de instalar a grande massa populacional que busca nos grandes centros industriais oferecer-se como mão de obra. Em “Mulheres e Menores no Trabalho Industrial”, são caracterizadas como se acomodavam habitacionalmente estes excedentes populacionais, onde a autora Esmeralda Blanco B. de Moura demonstra as condições subumanas destas instalações:

A cidade sofre, então, a pressão do crescimento demográfico: falta de «habitações decentes e baratas e necessidade de residir «perto do lugar de emprego dada à insuficiência e o alto custo do transportes » provocam um verdadeiro confinamento do trabalhador nas habitações coletivas. [...}Casebres e cortiços multiplicam-se próximo aos estabelecimentos industriais, em «ruas infectas, sem calçamento», denunciando a precária situação sócio-econômica do trabalhador. Residindo em habitações coletivas ou em casinhas – [...] aglomerando-se «para dormir» nos chamados hotéis cortiços. (MOURA, 1982, pg.22)

Esta característica verifica-se claramente no cortiço construído por João Romão, personagem da obra O Cortiço, que busca lucrar primeiramente com o material de segunda mão para construção das casinhas e após com o aluguel obtido por elas. Pelo fato de ser localizado próximo a uma pedreira locava suas habitações aos operários que lá trabalhavam. Além dos trabalhadores da pedreira, lá residiam suas famílias, imigrantes, ex-escravos, as mulheres lavadeiras e pessoas que não possuíam condições financeiras de melhor habitarem.

3. A Mulher dentro do Cortiço

Ao analisarmos o estereótipo das mulheres da obra O Cortiço, percebemos que o autor acaba por interpretá-las da mesma forma, colocando-as em um mesmo patamar de promiscuidade, selvageria e instintividade primitiva, independente da classe social da qual ela venha a pertencer.

Com isto percebemos uma necessidade por parte do mesmo em caracterizar as mulheres como um objeto de futilidade, e ela como um animal, sem espírito e consciência dos seus próprios atos. No entanto ao homem fica reservada a compreensão de sua instintividade, já que é macho, como podemos perceber na citação retirada da obra em questão.

Mas, daí a um mês, o pobre homem, acometido de um novo acesso de luxuria, voltou ao quarto da mulher. [...] Miranda nunca a tivera, nem nunca a vira assim tão violenta no prazer. Estranhou-a. Afigurou-se-lhe estar nos braços de uma amante apaixonada; descobriu nela o capitoso encanto com que nos embebedam as cortesãs amestradas na ciência do gozo venéreo. (AZEVEDO, 2004, p.21)

No trecho acima, percebe-se a necessidade do autor em colocar o ato de Miranda, como algo que provém da luxaria e da necessidade masculina, porém, também deixa claro o fato de sua esposa, D. Estela, não poder assumir na cama o papel de amante voraz pelo amor e as caricias do próprio esposo, tanto que quando utiliza o termo “cortesã amestrada”, fica claro que uma esposa jamais poderia assumir tal função.

No decorrer da obra encontramos diversas mulheres figurando aspectos que vão sendo visualizados entre os habitantes destas moradias. Dentre elas, principalmente as lavadeiras, prostitutas, amas de leite, ex-escravas que na verdade continuavam numa condição de total submissão, como no caso de Bertoleza, que juntava suas moedas para a compra de sua alforria.

Bertoleza, “crioula trintona” (AZEVEDO, 2004, p.15), que conseguiu reunir certa quantia em dinheiro a partir das viandas que cozinhava para fora. Desta quantia passava uma porcentagem ao seu dono, um velho cego residente em Juiz de Fora, outra parte era destinada para a compra da alforria e uma terceira parte para sua sobrevivência. Com a morte de seu primeiro companheiro, com o qual vivia amigada, passa a viver com João Romão que administra suas economias e as transforma em considerável fortuna. Esta união torna-se benéfica para ambos, pois para João, “Bertoleza representava o papel tríplice de caixeiro, de criada e de amante” (AZEVEDO, 2004, p 17), e para ela no momento em que “ele propôs-lhe morarem juntos, e ela concordou de braços abertos, feliz em manter-se de novo com um português, porque, como toda a cafuza, Bertoleza não queria sujeitar-se a negros e procurava instintivamente o homem numa raça superior à sua.” (AZEVEDO, 2004, pg.16). Neste contexto vê-se ainda um pesado preconceito relacionado a pessoas que exerciam trabalhos pesados, e também em relação à cor de pele dos indivíduos. O autor Aluísio Azevedo deixa claro este desdenho a estas pessoas nas relações existentes entre elas, sendo que o preconceito era mútuo entre todos. Bertoleza era negra e exercia preconceito em ter um companheiro negro, por exemplo.

Romão utiliza-se da mulher, do trabalho exercido ao longo dos anos de união para acumular fortuna. Após ter acumulado esta fortuna, quer também status social, e para isso é necessário casar-se com alguém que possa lhe promover a aquisição de um título, no caso Zulmira, porém Bertoleza representa um obstáculo a este objetivo. Contudo esta não aceita de bom grado ser simplesmente descartada:

Você está muito enganado seu João, se cuida que se casa e me atira à toa! Sou negra, sim, mas tenho sentimentos! Quem me comeu a carne tem de roer-me os ossos! Então há de uma criatura ver entrar ano e sair ano, a puxa pelo corpo todo o santo dia que Deus manda o a mundo, desde pela manhãzinha até pelas tantas da noite, para ao depois ser jogada no meio da rua, como galinha podre?! Não! Não há de ser assim, seu João! (AZEVEDO, 2004, pg.146).

João para livra-se definitivamente de Bertoleza, denuncia-a como escrava fujona. A mesma não suportando tamanha traição e humilhação comete suicídio.

O Casamento neste período ainda representava segurança e concedia a mulher o devido respeito perante a sociedade, mesmo que isso representasse sujeitar-se a inconvenientes conjugais, o que fica visível na fala de D. Estela: “Desgraçadamente para nós, mulheres da sociedade não podemos viver sem o esposo, quando somos casadas; de forma que tenho de aturar o que me caiu em sorte, quer goste dele, quer não goste!” (AZEVEDO, 2004, pg.34).

Estas características serão encontradas nos demais casais figurados na obra, como: Bruno e Leocádia, Miranda e D. Estela, Jerônimo e Piedade, Firmo e Rita, Pombinha e Costa. Relações plenas de interesses, com exceção de Alexandre e Augusta que aparentemente viviam de forma mais harmônica, apesar de Augusta exercer o velho padrão da esposa recatada e submissa ao marido.

Porém, esta relação de necessidade de manter um casamento fazia-se também por parte do homem, que buscava na mulher uma forma de ascender socialmente: “uma mulher naquelas condições, dizia ele convicto, representa nada menos que o capital, e um capital em caso nenhum a gente despreza! Agora, você o que devia era nunca chegar-se para ela...” (AZEVEDO, 2004, pg.34).

No entanto também encontramos em O Cortiço as mulheres que não vêem no casamento um bom futuro. Para elas não é necessário “ajuntar-se” a um homem para conseguir sobreviver perante a sociedade e também sustentar-se economicamente. A personagem Rita Baiana de Aluízio Azevedo, lavadeira é uma mulher independente. Em suas atitudes ela representa um exemplo àquelas mulheres que se deixam rebaixar pelos homens. Por eles tudo fazem, até mesmo abrir mão de suas vontades próprias. Nesse sentido Rita exerce entre as mulheres que se encontram na mesma situação social e econômica que a sua, um exemplo, tornando-se uma líder e um exemplo de vida: “- Casar? protestou Rita. Nesta não cai a filha de meu pai! Casar? Livra! Para quê? Para arranjar cativeiro? Um marido é pior que o diabo; pensa logo que a gente é escrava! Nada! Qual! Deus te livre! Não há como viver cada um senhor e dono do que é seu” (AZEVEDO, 2004, pg.62)

A personagem vive suas paixões, sem abrir mão de sua autonomia. O autor a retrata como uma mulher forte, que através de suas trouxas de roupa que lava para fora se mantém economicamente pagando primeiramente seu quarto no Cortiço, assim como sua alimentação e suas farras. Algo que também se percebe é o fato de Azevedo não a tratar como uma mulher promíscua, mas sim uma mulher que expõe sua sensualidade, pois esta está presente em todos os atos da mestiça, vendo-se mostrar nas festas que promove e até mesmo quando está trabalhando ao arregaçar sua saia nas cadeiras e mostra suas pernas e coxas.

A condição da mulher no cortiço sob o jargão do marido não era tolerado ainda assim pelas mulheres. Em geral aceitavam sua condição passivamente como no caso de Augusta. Leocádia, esposa de Bruno, não queria mais esta condição e viu na venda de seu leite materno seu caminho de independência. Na época esta era uma prática ainda muito comum, em que na a classe pobre, mães recentes vendiam sua força de trabalho, através do aleitamento materno por um salário mais digno. Não deixava de ser uma forma de prostituir-se, já que muitas engravidavam exclusivamente para este fim, dadas as condições de vida miseráveis em que se encontravam. Leocádia é um exemplo desta condição quando pede a Henriquinho, moço galante hospedado em casa de Miranda para fazer-lhe um filho para obter mais renda, já que quer deixar a vida de lavadeira:

-Olha! Pediu ela, faz-me um filho, que eu preciso alugar-me de ama-de-leite...Agora estão pagando muito bem para as amas! A Augusta Carne-Mole, nesta última barriga, tomou conta de um pequeno aí na casa de uma família de tratamento, que lhe dava setenta mil-réis, por mês!... (AZEVEDO, 2004, p.62).

Na obra ela se sujeita a trair o marido pelo fato deste não engravidá-la. No entanto ao descobrir o mal feito da esposa, Bruno não a aceita em casa e a expulsa, o que não a impede de levar adiante a gravidez que no decorrer da obra servirá ao propósito inicial.

Situação esta que era muito comum na época para suprir as necessidades de sobrevivência em relação a uma sociedade, onde o emprego era algo difícil de ser conquistado, ainda mais por uma mulher pobre. Sobra então a estas mulheres submeter-se muitas vezes a pressão social, vendendo-se.

4. A Mulher na Elite Republicana Segundo Aluísio Azevedo

O autor de O Cortiço ao trabalhar as mulheres que pertenciam à elite Republicana brasileira expõe a primitividade e a promiscuidade mesmo das mulheres que pertenciam às classes inferiores, tratando-as como seres grotescos e dominados por seus instintos primitivos.
Ao abordar a personagem Pombinha, menina que primeiramente fazia parte da elite, e devido à morte do pai, ela e sua mãe acabam por morar no cortiço, porém, a sua tutora busca manter nela os hábitos voltados à intelectualidade e a cultura, menina deveras prendada a espera de um bom casamento para retornar a ascender socialmente, sendo este realizado com Costa, homem do comércio.

Dentro do cortiço, Pombinha, pelo que se percebe na literatura de Aluízio de Azevedo, é a única pessoa letrada, a qual cabe a função de escrever correspondências para seus vizinhos e companheiros de moradia, e, em retribuição, a garota recebia mimos destas pessoas, o que a mantinha bem apessoada, juntamente com as delicadezas da mãe. Essa aproximação com a vida pessoal dos miseráveis moradores do cortiço e também, ao relacionar-se com Leoni, prostituta da alta sociedade, passa a perceber o poder que as mulheres exercem sobre os homens,

[...] Que estranho poder era esse, que a mulher exercia sobre eles, a tal ponto, que os infelizes, carregados de desonra e de ludíbrio, ainda vinham covardes e suplicantes mendigar-lhe o perdão pelo mal que ela lhes fizera?... Sorriu. E no seu sorriso já havia garras. [...] Compreendeu como era que certos velhos respeitáveis, cuja fotografia Léoni lhe mostrara no dia que passaram, juntas, deixavam-se vilmente cavalgar pela loureira, cativos e submissos, pagando a escravidão com honra, os bens, e até com a própria vida, se a prostituta, depois de os ter esgotado, fechava-lhes o corpo. E continuou a sorrir, desvanecida na sua superioridade sobre esse outro sexo, vaidoso e fanfarrão, que se julgava senhor e que, no entanto, fora posto no mundo simplesmente para servir ao feminino; escravo ridículo que, para gozar um pouco, precisava tirar da sua mesma ilusão a substância do seu gozo; ao passo que a mulher, a senhora, a dona dele, ia tranqüilamente desfrutando o seu império, endeusada e querida, prodigalizando martírios, que os miseráveis aceitavam contritos, a beijar os pés que os deprimiam e as implacáveis mãos que os estrangulavam. (AZEVEDO, 2004, pg.96)

A partir de então Pombinha percebe que o matrimônio com Costa não é de seu esperado, então busca unir-se a Léoni para então tornar-se uma prostituta de luxo. Já Léoni por sua vez, meretriz há algum tempo, acompanhada de riquezas e influências sociais conquistadas por esta profissão, apresenta um novo mundo a Pombinha, fascinando-a por seu esplendor, e a possibilidade de ascensão social e ganhos financeiros com maior facilidade.

Segundo Luiz Carlos Soares em Rameiras, Ilhoas, Polacas... afirma que a prostituta tem como função social “um papel estabilizador na sociedade, permitindo que o homem pudesse descarregar a excitação causada pela necessidade imperiosa do prazer venéreo, sem provocar grandes problemas na organização social” (SOARES, 1992,pg.17), ou seja, para Pombinha e Léoni sua profissão, de certa forma, era de grande valia para manutenção de um sistema, onde buscava-se promover certa estabilidade social (status quo), e serviam de válvula de escape para as tensões, as fantasias e desejos sexuais dos homens, sendo que estas necessidades não poderiam ser saciadas por suas esposas.

Léoni e Pombinha, segundo o Dr Lassance Cunha, no livro Rameiras, Ilhoas, Polacas, pertenciam a classe das prostitutas de “primeira ordem que eram freqüentadas por ricos, vivendo isoladamente em casas de sobrado decentes” (SOARES, 1992, pg.26). Percebe-se na literatura de Aluízio Azevedo e a historiografia elaborada por Luiz Carlos Soares, que utiliza-se dos estudos médicos de Lassance Cunha a incongruência em relação ao posicionamento de Léoni perante a população do cortiço, e também faz-se referências em relação aos seus trajes e moradias,

[...] freqüentadas somente por aquelas pessoas que podem retribuir seus favores com generosidade, moram isoladas, em casas de sobrados decentes e bem ornadas, vivem em tal ou qual opulência, e trajam com todo o primor da moda; olham com desprezo para as suas companheiras que estão em escala inferior, e afetam em público um ar de honestidade que dificilmente deixa transparecer a fealdade de sua conduta. Esta ordem de mulheres porta-se em geral com decência, e o trato freqüente que tem com pessoas de uma educação delicada lhes faz adquirir certo grau de cortesia, de cultura, e de urbanidade em suas maneiras e seu falar: não se encontra nelas a desenvoltura, o despejo imodesto, a torpe lascívia das ordens inferiores; jamais permite que em sua casa se congreguem os libertinos para representarem cenas de devassidão e vivendo sempre na maior tranqüilidade, não incomodam as autoridades nem ofendem ao pudor com ações escandalosas.” (SOARES, 1992, pg.26)

[...] seja assim ou assado, a verdade é que ela passa muito bem de boca e nada lhe falta: sua boa casa; seu bom carro para passear à tarde; teatro toda noite; bailes quando quer e, aos domingos, corridas, regatas, pagodes fora da cidade e dinheirama grossa para gastar à farta!” (AZEVEDO, 2004, pg.104).

Ao adentrar no Cortiço, Léoni busca manter sua aparência de boneca francesa, mas, no entanto, não destratava todos aqueles que vinham a olhá-la com curiosidade de quem nunca havia visto tal beldade, voluptuosa e bem vestida. Até por que esta é madrinha de uma menina, filha de moradores do cortiço, que trata a qual como se fosse sua própria: ”Léoni na casa da comadre, cercada por uma roda de lavadeiras e crianças, descritiva sobre assuntos sérios, falando compassadamente, cheia de inflexões de pessoa prática e ajuizada, condenando maus atos e desvarios, aplaudindo a moral e a virtude.” (AZEVEDO, 2004, pg.103).

Ao passo que, D. Estela esposa do rico empresário Miranda, que obteve tal posição social através do casamento com a mesma, destacava-se na alta elite social com toda sua pompa, apesar de um casamento arruinado, mantido somente de aparências, buscando em outros homens seus desejos sexuais e afetivos. Podemos dizer que Azevedo trata Estela com o mesmo grau de promiscuidade na qual retrata as mulheres do cortiço.

5. Conclusão

A República instalou-se definitivamente no Brasil, e com ela um modelo que ainda pregava uma moral permeada das antigas tradições e costumes que colocavam a mulher em seu “devido lugar”. Tanto a ideologia judaico-cristã como a positivista ditavam o modelo correto de conduta feminina. Para Aluísio Azevedo esta conduta era tão certa quanto a caracterização que suas mulheres de O cortiço assumiam. Todas relegadas ao mesmo patamar, sem diferenciação entre as corticeiras, as prostitutas ou as senhoras de sociedade.
A República, como pública que era, aos poucos ia sutilmente convidando estas mulheres a adentrarem na esfera social, para colocarem-se e assumirem suas posturas em prol de uma qualidade de vida que atendesse aos seus desejos, tornando aos olhos dos conservadores este movimento feminino em algo não aceitável socialmente.

Neste contexto concluímos que Aluízio através de seu naturalismo deixa claro o lugar em que socialmente a mulher deveria estar, ou seja, a política, a economia e a sociedade podem receber transformações desde que estas não influenciem no comportamento da mulher. Esta deve manter-se casta, virtuosa e recatada, atendo-se ao papel de boa esposa, mãe carinhosa e excelente educadora, transmitindo as regras que a sociedade deve continuar privilegiando. E que a Prostituição mais do que uma necessidade financeira, também passava a ser uma alternativa de ascensão social e de emancipação feminina, principalmente no caso das prostitutas de primeira ordem que eram mulheres respeitadas e mantinham até uma participação junto à elite política e social durante a República Velha.

No entanto, ainda não é neste momento em que a mulher terá seu lugar ao sol, porém, é neste contexto de industrialização e progresso que ela também será requisitada e aceita para a consolidação da prosperidade nacional. È neste momento que a mulher lentamente irá aparecer para contribuir para tal movimento e conquistando a força motriz que fará dela renascer das cinzas, qual a fênix adormecida.

Referências Bibliográficas

AZEVEDO, Aluísio. O Cortiço. São Paulo, Martin Claret, 2004.

CARVALHO, José Murilo de. A Formação das Almas: Oo imaginário da República no Brasil. São Paulo, Companhia das Letras, 1990.

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MOURA, Esmeralda Blanco B. de. Mulheres e Menores no Trabalho Industrial: os fatores sexo e idade na dinâmica do capital. Rio Grande do Sul, Editora Vozes, 1982.

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SOARES, Luiz Carlos. Rameiras, Ilhoas, Polacas...A prostituição do Rio de Janeiro do século XIX. São Paulo, Editora Àtica, 1992.



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Sumário da Edição
Número 01

Tema da edição:
História do Brasil Contemporâneo