Numa
certa manhã do século VI, o grande
Clóvis, rei dos francos, acordou inquieto,
chamou seu cavalariço e, antes do desjejum,
cavalgou até a montanha mais alta de
seu reino. De lá o rei pôde observar
as mais longínquas fronteiras de seus
domínios. Clóvis havia lutado
muito para unificar as várias tribos
germânicas que agora estavam sob seu comando.
Mas Clóvis sabia que faltava algo.
O reino dos francos era como uma muralha feita
de pedras sobrepostas, porém, sem que
houvesse argamassa que solidificasse o muro.
Assim, se algum dos tantos inimigos arremetesse
contra os francos, o muro ruiria. Clóvis
sabia que a exemplo da muralha, as diversas
tribos bárbaras que estavam debaixo de
sua autoridade poderiam se desunir a qualquer
momento. Clóvis necessitava criar algo
que não só legitimasse seu domínio,
mas que garantisse a união entre as tribos
francas.
Nos anos 1980, um jovem músico brasileiro
chamado Cazuza tinha a mesma inquietação
de Clóvis.
Cazuza vivia numa sociedade muito mais complexa
do que a do rei franco. Na época de Cazuza,
a sociedade de consumo já dominava o
país. O consumismo passava a ser quase
uma religião, com a economia mundial
girando em torno dela. Consumir se tornou status,
quanto mais consome, mais importante é
o individuo na sociedade. Porém, o principal
malefício da sociedade de consumo está
na alienação. Principalmente dos
jovens que perdem a perspectiva sobre o futuro
e passam a viver somente o presente.
Foi dentro desta perspectiva alienante, que
Cazuza escreveu uma das músicas de maior
importância para o cenário musical
brasileiro dos anos 1980. “Ideologia” era uma
crítica aos jovens daquele tempo. Apesar
da origem burguesa, Cazuza conhecia a juventude
brasileira dos anos 1960 e 1970, uma juventude
que tinha protestado contra a ditadura, que
havia lutado em guerrilhas e que buscava uma
alternativa para o país. Mas ele também
sabia que essa juventude tinha sofrido severas
represálias por conta de tudo isso. Os
jovens daquela época, mesmo que fossem
a minoria, tinham suas convicções
e lutavam por elas.
Ciente disso, Cazuza cantava de forma melancólica
“ideologia, eu quero uma pra viver”, pois identificava
na juventude brasileira dos anos 1980 uma alienação
política muito perigosa para o futuro
do Brasil. Para ele, os jovens de seu tempo,
não tinham as mesmas convicções
das épocas anteriores. Não lutavam
por um mundo melhor, apenas se deslumbravam
com o mundo que tinham pela frente. Os jovens
brasileiros dos anos 1980 agonizavam pela falta
de ideais de futuro e apenas aceitavam o mundo
como ele era.
Mesmo assim, a música logo chegou ao
topo das listas de rádios e programas
televisivos. Muitos brasileiros cantarolavam
o refrão, mesmo sem entender o real significado
do que cantavam.
Outra pessoa que escreveu sobre a importância
da ideologia foi Karl Marx.
No século XIX, Marx escreveu um livro
ao qual batizou de “A Ideologia Alemã”,
nele o pensador alemão afirmou que existe
uma força invisível capaz de controlar
a sociedade. Força esta que age nos fazendo
acreditar que pensamos por nós mesmos,
quando na verdade nossos desejos e ideias procedem
desse poder que nos faz pensar de acordo com
o que ele quer que nós pensemos. Esse
poder, que é social, Marx chamou de ideologia.
Mas Marx não parou por ai, o pensador
alemão afirmou também que sempre
que a ideologia apresenta deformidades ou desgastes,
torna-se necessário buscar uma alternativa,
surgindo a oportunidade para o nascimento de
uma nova ideologia.
Mas, voltando à história inicial.
Lá do alto da montanha, Clóvis
teve uma brilhante ideia que mudou a Europa
e a civilização Ocidental para
sempre. Clóvis percebeu que o cimento
que uniria as diversas tribos germânicas
debaixo de sua autoridade era a religião
cristã e seu severo código de
ética.
Até essa época os francos ainda
cultuavam uma grande diversidade de deuses,
em sua maioria deuses tribais. Cada uma das
tribos germânica tinha seu deus protetor
e obedecia a tradição de leis
ancestrais. Clóvis percebeu que se os
francos cultuassem um só deus, um deus
que os unisse em sua devoção,
eles aceitariam melhor a ideia de servirem a
um só rei e, assim, a um código
de leis unificado.
Um só deus, um só rei.
Foi dessa forma que Clóvis selou sua
aliança com o papa e a Igreja Católica.
O rei franco foi batizado, assim como todos
os seus generais, e o cristianismo tornou-se
a religião oficial do reino. Essa aliança
representou o nascimento do maior de todos os
reinos cristãos da Idade Média.
Sem que os chefes tribais percebessem, Clovis
criou um forte aparelho de Estado que possibilitou
a construção do Império
Merovíngio que, anos depois, se transformaria
no Sacro Império Romano, o maior império
do mundo Ocidental desde Roma.
Clóvis não deixou passar a oportunidade
e agiu transformando um pequeno reino no maior
império de sua época.
Hoje (março de 2011), assistimos pela
internet, rádio, jornais e televisão
à queda de uma série de ditadores
no mundo islâmico (Mubarak no Egito, Kadafi
na Líbia e Ben Ali na Tunísia),
tiranos que estavam no poder por décadas.
Mas a derrubada desses regimes não ocorreu
de uma hora para outra, foram necessários
anos de preparação. Os movimentos
reformadores vinham sendo construídos
havia tempos, arregimentando milhares de seguidores
ano a ano, principalmente entre os jovens (sem
dúvida a maioria dos manifestantes).
Jovens que lutam por um futuro melhor para si
e para seus países, não aceitando
mais a ausência de liberdade e a inexistência
de participação política.
Mas e no Brasil?
Como afirma a música de Cazuza, será
que nossas “ilusões estão todas
perdidas”? Nossos “sonhos foram todos vendidos”?
Afinal, “aquele garoto que ia mudar o mundo; agora
assiste a tudo em cima do muro”.
O que faremos a respeito?
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