O
litoral de Santa Catarina é demais! Florianópolis
então, nem se fala! No último
verão passei alguns dias no norte da
ilha, mais precisamente em Canasvieiras, mas
também andei por Ingleses, Daniela, Juererê,
Santinho e Praia Brava. Aproveitando ao máximo
os poucos dias de férias que tive no
litoral de Floripa.
Mas como sempre que estou na praia, choveu boa
parte dos dias.
Num destes dias chuvosos fui até a praia
em Canasvieiras. A praia tem esse nome porque
muito tempo atrás havia no local um canavial,
onde o senhor Vieira cultivava cana-de-açúcar.
Entenderam? Canas Vieiras! Lá me sentei
na areia, olhando para o mar. O lugar é
lindo. A praia esvaziada pela chuva proporcionava
um ambiente perfeito para a contemplação
da natureza.
Canasvieiras fica no extremo norte da ilha o
que lhe proporciona um o mar calmo e sem ondas,
perfeito para nadar e para a prática
de esportes contemplativos como caiaque, canoa
e passeios a barco. Curiosamente a calmaria
do mar se reflete nas pessoas que habitam o
balneário, todas muito calmas e tranquilas.
Alguns dias depois, novamente num dia de chuva
(argh!), fui até a praia de Ingleses.
O balneário recebeu esse nome em razão
de um navio inglês ter ficado encalhado
no local por muito tempo, o destino do navio
ninguém sabe precisar, mas o nome da
praia ficou. Neste dia, novamente aproveitei
a chuva para uma caminhada na areia. Ingleses,
que fica de frente para o oceano, tem um mar
violento, com grandes ondas. O cenário
é perfeito para esportes radicais. Tanto
que mesmo com a chuva existiam muitos surfistas
na água.
Eu sentei na areia e fiquei observando. Mas
curiosamente não tive a mesma paz de
espírito que tivera em Cansvieiras. Em
Ingleses, observando o furioso mar, tive uma
experiência reflexiva. Era impossível
observar aquelas águas bravas e não
me questionar sobre a ação humana
sobre a natureza.
Mexido pela paisagem e a violência do
mar, eu meditava sobre como o homem dominou
e transformou a natureza de acordo com seus
interesses. Mesmo naquelas belas praias a ação
do homem era visível nas construções
da orla, nas casas, na pavimentação
e, principalmente, na poluição.
É lastimável que ao mesmo tempo
em que se apropriou da natureza, o homem a tornou
alienada de seu propósito original.
Foi então que pensei no que Karl Marx
afirmou ser a alienação da natureza.
Para ele, a sociedade havia afastado a natureza
de sua função original, transformando-a
em mera fornecedora de matéria-prima.
Ao se apropriar da natureza, o homem havia transformado
o meio ambiente em um mero fornecedor de riquezas,
retirando dele sua harmonia e funções
naturais. Com isso, o homem havia alienando
a natureza.
Marx também escreveu sobre a alienação
do ser humano. Para ele, quando alguém
vende sua força de trabalho ou seu intelecto
para um patrão, está abrindo mão
de fazer o que deseja para realizar o que o
empregador lhe ordena. Ao trocar sua força
de trabalho ou seu intelecto por um salário,
o homem esta se alienando, ou seja, ao realizar
um trabalho remunerado, o homem deixa de ser
dono de si mesmo para pertencer ao patrão,
ao menos enquanto realiza a tarefa para o qual
é pago. Marx chamou esse processo de
alienação.
Pensando sobre isso, lembrei-me da história
de um monge alemão que também
havia passado por um conflito parecido.
Martinho Lutero nasceu na cidade de Eisleben,
na Alemanha, em 1483. Nesta época, ao
contrário de outras regiões da
Europa, a Germânia vivia em uma grave
crise econômica e social. A região
era acossada por hostes turcas que vinham do
leste ameaçando invadir o país.
Mas não era só isso, também
havia grande fome na região devido a
uma sequência de más colheitas.
Como desgraça pouca é bobagem,
o papa Leão X enviara à província
padres com o objetivo de vender indulgências,
documentos assinados pelo pontífice que
garantiam ao comprador o perdão de seus
pecados.
Lutero, um monge agostiniano, que dia-a-dia
presenciava a agonia do povo, não podia
concordar com a cobrança das indulgências.
Com isso, escreveu suas famosas 95 Teses, nelas
o monge defendeu a ilegalidade das indulgências
afirmando que o perdão de pecados somente
poderia ser alcançado pelo arrependimento
genuíno e pela fé pessoal em Deus.
Ao afirmar que a fé é responsável
pela aproximação do fiel com Deus,
Lutero criou o ambiente para que os homens de
sua época tivessem acesso a uma libertação
religiosa inédita. A pregação
de Lutero possibilitou que os homens se desprendessem
da alienação religiosa. Pois para
ele, o catolicismo havia transformado uma fé
simples em Deus, numa religião altamente
complexa que afastava os homens do propósito
original do cristianismo, ou seja, “amar a Deus
acima de todas as coisas e amar ao próximo
como a si mesmo”. Ao contrário dos católicos,
que se preocupavam em apenas observar os mandamentos,
os seguidores de Lutero defendiam que o que
realmente importava não era obedecer
por obedecer, mas internalizar a Palavra de
Deus, transformando-a em uma prática
diária. Era o nascimento da ética
protestante.
A ação de Lutero libertou os cristãos
da religiosidade medieval, dando-lhes acesso
direto a Deus por meio de sua fé, anulando
a intermediação da Igreja. Para
o monge alemão era mais importante uma
fé legítima e pessoal do que a
dependência de uma hierarquia eclesiástica
que somente dizia aos homens como deveriam se
comportar.
Lutero retirou o homem medieval de sua alienação
religiosa, dando-lhe liberdade de decisão
e pensamento. Curiosamente Lutero rompeu com
a religião mantendo sua fé intacta.
Pois o monge entendia que a religião
era apenas um instrumento de controle social,
se a sociedade era formada por homens corruptíveis,
a religião também era. Por outro
lado, a fé era pessoal e intransferível
e, desde que sujeita a Deus, garantia ao indivíduo
a liberdade de pensamento. Com isso, o homem
passava a ser o responsável por suas
próprias decisões, independentemente
do que dizia a Igreja Romana.
Como resultado de sua ousadia, Lutero foi considerado
herege e excomungado da Igreja pelo papa Leão
X. Mas o estrago já havia sido feito.
A Igreja Cristã nunca mais seria a mesma.
Mas voltando a história inicial.
Na areia de Ingleses eu fiquei refletindo sobre
tudo isso. Se em Canasvieiras eu havia apenas
contemplado a natureza, em Ingleses eu questionava
o que nós, seres humanos, estamos fazendo
com ela. Minha reação em Ingleses
foi parecida com a que diferenciava Lutero dos
outros monges europeus de sua época.
Se na Espanha, França e Itália
os monges viviam em mosteiros, afastados da
população comum, na Alemanha os
monges viviam junto ao povo. Por isso, ao contrário
de seus pares de outras regiões, Lutero
entendia sua geração como nenhum
outro religioso poderia entender. Da mesma forma
eu experimentava, em Ingleses, a reflexão
crítica e me questionava sobre o que
estamos fazendo com a natureza. Nas cidades,
onde pouco nos resta do meio ambiente natural,
agimos como se a natureza tivesse o propósito
único de nos servir, quando na verdade
nós, seres humanos, somos parte inseparável
dela.
Acredito que está no exemplo de Lutero
a solução para resgatar a função
original da natureza. Se como Lutero, estivermos
identificados com o problema dos oprimidos,
no nosso caso o meio ambiente, seremos transformados
por ele e não o contrário. E,
somente assim, entenderemos que somos parte
da natureza e não seus proprietários.
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